sábado, 9 de setembro de 2017

Governo quer nova política de saúde mental; especialistas criticam manicômios






Em todo o Brasil, 18,6 milhões de pessoas (9,3% da população) sofrem com distúrbios relacionados à ansiedade. Já 11,5 milhões (5,8% do total) são afetadas pela depressão, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que coloca o país no topo da lista de maior prevalência da doença, na América Latina. Apenas em 2015, foram registrados oficialmente cerca de 12 mil suicídios no Brasil. Apesar de ser um problema grave de saúde pública, a subnotificação nos registros de casos de doença mental, a baixa ocupação de leitos específicos e erros na gestão dos recursos são problemas apontados pelo Ministério da Saúde como recorrentes no país. Relatório sobre a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) elaborado pelo Ministério da Saúde mostra que R$ 185 milhões aportados para financiar serviços nessa área, nos últimos dez anos, não foram aplicados. Cerca de 16% dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) – 385 de um total de 2.465 – não registraram atendimentos nos últimos três meses. Já metade dos 1.164 leitos destinados à internação de pessoas com doenças mentais em hospitais comuns não tem registrado ocupação, enquanto 44 hospitais psiquiátricos tiveram atendimento acima da capacidade. Diante desse quadro, o Ministério da Saúde anunciou a criação de um grupo de trabalho que será formalizado neste mês. O anúncio foi feito durante reunião da Comissão Intergestores Tripartites (CIT), instância que reúne representantes do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), além de gestores do próprio Ministério da Saúde. Segundo o coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do ministério, Quirino Cordeiro Junior, o objetivo é aprimorar o diagnóstico e propor medidas para que os serviços sejam ofertados com mais efetividade e otimização de recursos. Organizações como a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) criticam a situação da assistência pública à saúde mental e avaliam que a área “passa por fase caótica”. Em balanço divulgado neste ano, as organizações apontam a sistemática redução do financiamento para a área e pedem a ampliação da rede de atenção. Os rumos que serão adotados no caso de uma possível alteração da política de atendimento em saúde mental gera preocupação entre especialistas.

Manicômios: Para algumas entidades, os números apresentados sobre a ocupação de leitos podem servir para estimular a abertura de vagas em hospitais psiquiátricos, os chamados manicômios. Questionado sobre o tema, Cordeiro Junior, do Ministério da Saúde, disse que não há proposta oficial de expansão das vagas nesses hospitais, mas que é preciso repensar essa ocupação. De acordo com ele, desde 2013, quando as vagas em hospitais gerais foram criadas, houve cerca de 10% a 15% de ocupação, entretanto, o ministério repassou aos hospitais financiamento referente à utilização plena dos leitos. “Nem o Ministério da Saúde nem outras entidades fizeram proposta sobre isso”, disse, referindo-se aos manicômios. O que é preciso, segundo o coordenador, é ampliar a discussão sobre o atendimento, com vistas à melhoria.

Em nota, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) “ratificam o compromisso com os princípios da reforma psiquiátrica brasileira” e avaliam “como positiva e necessária a reflexão e o debate acerca da evolução da saúde mental no Brasil”. Os conselhos integrarão o Grupo de Trabalho Tripartite criado pelo Ministério da Saúde e que deve iniciar as atividades em setembro. A vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Ana Pitta, teme retrocessos na abordagem, com o retorno dos hospitais psiquiátricos para o centro da política. Ela lembra que a ditadura militar adotou o “enclausuramento, a prisão e a exclusão como modelo de funcionamento, criando a indústria da loucura no país”. Naquela época, a repercussão de casos como o do Hospital Colônia, em Barbacena (MG), onde morreram 60 mil pessoas entre 1903 e 1980, fortaleceu a crítica da sociedade aos manicômios. No contexto da redemocratização, houve a fundação do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) e depois do Movimento de Luta Antimanicomial.

Reforma psiquiátrica

A abordagem foi definitivamente alterada em 2001, quando foi aprovada a Lei nº 10.216, que modifica o modelo assistencial em saúde mental, tendo como base as premissas da reforma psiquiátrica, com destaque para a atenção de base comunitária, com a menor intervenção possível. Embora os manicômios não tenham sido proibidos, houve um redirecionamento. A lei fixa que “a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos” e que a permanência de um mesmo paciente fica limitada a sete dias corridos ou a dez dias intercalados, em um período trinta dias. O coordenador do Grupo de Pesquisa Saúde Mental e Sociedade, Marcos Roberto Vieira Garcia, relata que a abordagem da política de saúde mental do Brasil vem sendo elogiada no mundo todo. “Os hospitais psiquiatros foram historicamente denunciados por violações de direitos humanos de todos os tipos”, lembra Garcia, que é professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Segundo ele, pesquisa realizada em 2014, em São Paulo, revelou que mais de 100 pacientes moravam há mais de trinta anos nessas instituições. “Isso em um país em que a prisão máxima é de trinta anos. É isso que as pessoas querem reproduzir?”, questiona. “Temos que pensar essa política dentro de uma visão mais geral de sociedade, que é a de inclusão. Manicômios não são locais de tratamento, são locais exclusivamente de exclusão”, critica o professor que tem acompanhado a desinstitucionalização de pessoas que moraram por anos em hospitais psiquiátricos em Sorocaba (SP), uma das poucas cidades brasileiras que ainda tem quatro manicômios em funcionamento.

Recursos

A vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, Ana Pitta, destaca que a abordagem comunitária é a que orienta experiências exitosas, como a do Canadá, da Holanda e da Itália. No caso do Brasil, na avaliação dela, “o problema central da política de saúde mental é o desinvestimento brutal ocorrido nos últimos três anos”. “Nós tivemos um momento de apogeu com a aprovação da lei, em 2001, fomos crescendo em termos de cobertura assistencial do país, chegando a todos os estados com os Caps, um elemento organizador territorial que é estratégico para que possamos fazer a transição dos manicômios para a abordagem comunitária”, avalia. Desde 2010, contudo, houve redução de aportes, o que inviabiliza, na opinião da especialista, a efetivação de ações de controle, avaliação e qualificação de recursos humanos. Na avaliação do coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, o problema está na implementação dos recursos disponíveis. De acordo com o governo, em dez anos, a pasta repassou mais de R$ 185 milhões para financiar serviços que não foram concretizados. O orçamento federal destinado à saúde mental é de R$ 1,3 bilhão por ano.

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